3 de julho de 2009

XLIX - A PONTA DO NARIZ.

NARIZ,consciência sem remorso,tu me valeste muito na vida...Já meditaste alguma vez no destino do nariz,amado leitor?A explicação do doutor Pangloss* é que o nariz foi criado para uso dos óculos – e tal explicação confesso que até certo tempo me pareceu definitiva; mas veio um dia,com a verdadeira e definitiva explicação.Com efeito,bastou-me atentar no costume do faquir.Sabe o leitor que o faquir gasta longas horas a olhar para a ponta do nariz,com o fim único de ver a luz celeste.Quando ele finca os olhos na ponta do nariz,perde o sentimento das coisas externas,embeleza-se no invisível,apreende o impalpável, desvincula-se da terra,dissolve se,eteriza-se.Cada homem tem necessidade e poder de contemplar,cujo efeito é a subordinação do universo a um nariz somente,constitui o equilíbrio,o gênero humano não chegaria a durar dois séculos: extinguia-se com as primeiras tribos.Ouço daqui uma objeção do leitor: -Como pode ser assim - diz ele -,se nunca jamais ninguém não viu estarem os homens a contemplar o seu próprio nariz?Leitor obtuso,isso prova que nunca entraste no cérebro de um chapeleiro.Um chapeleiro passa por uma loja de chapéus;é a loja de um rival,que a abriu a oito anos;tinha então duas portas,hoje tem quatro;promete ter seis e oito.nas vidraças ostentam-se os chapéus do rival;pelas portas entram os fregueses do rival;o chapeleiro compara aquela loja com a sua,que é mais antiga e tem só duas portas,e aqueles chapéus com os seus,menos buscados,ainda que o preço seja igual.Modifica-se naturalmente;mas vai andando,concentrado,com os olhos para baixo,ou para frente,a indagar as causas da prosperidade do outro e do seu próprio atraso,quando ele chapeleiro é muito melhor chapeleiro do que o outro chapeleiro...Nesse instante é que os olhos se fixam na ponta do nariz.A conclusão,portanto,é que há duas forças capitais:o amor,que multiplica a espécie,eo nariz,que subordina ao indivíduo.Procriação e equilíbrio.
*Personagem de Cândido,obra de Voltaire.
Machado de Assis – Memórias Póstumas de Brás Cubas
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Ainda bem que Machado de Assis escreveu esse capítulo.Identifiquei-me com ele,e por sua vez ele me cai exatamente como uma luva,sem que eu precise ficar dando explicações.

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